segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Filha do egoísmo

E seus olhos como brasa permaneciam inertes...

Como alguém pode passar a vida a tomar chá com a sua própria alma - e apenas ela - sem enjoar-se de si e sem sentir falta de outras companhias? Ou pelo menos trocar olhares com o mundo, num mínimo sinal de comunicação, apenas para dizer a si mesma que faz parte dele. Às vezes penso que algumas pessoas chegam a encontrar tão clara verdade que se tornam dementes ao se tratar do mundo ao redor, que é anestesiado. É como se vivêssemos constantemente envoltos em fumaça branca, a qual distorce e acoberta a Verdade, que desfila por aí em nuances ocultas. Mas, se eu começo a pensar que existe uma verdade e que essa é negada à maioria das pessoas, então eu estou ficando insana também.

Estaria eu me tornando a minha mãe? Quero dizer, eu não sei mais discernir entre o que acontece dentro ou fora de mim. E veja bem meus olhos, eles estão começando a ter preguiça de se mover.......

‘’Nem sempre se vê mágica no absurdo’’ repete a música.

Paro para observá-la em seu estado habitual de semi-consciência e, de tanto observá-la, deixo de vê-la, e, então, passo a estar também em torpor. Queria que acordasse de seu sonho íntimo. Queria que ela me pegasse pela mão e me contasse sobre as coisas da vida ou me explicasse o porquê de querer ter uma filha tão velha a ponto de não poder cuidar dela, apenas porque uma continuação sua sempre foi seu sonho.

Johanna nunca soube cuidar de si, mas ter uma filha era um capricho. E Johanna perseguia seus desejos como uma onça persegue sua presa.

Por que eu não consigo respirar perto dela?! Porque ela não deixa espaço para que existam quando é ela quem está existindo. Eu a odeio por isso. Eu poderia deixá-la e confrontar o mundo por Amália, mas não se enfrenta o mundo por alguém que não se ama. Nem por mim eu enfrentaria o mundo.

Permaneço e a vejo cada vez mais esfumada e menos sem contraste, cada vez mais espírito e menos carne.

Quanto a mim, eu já nasci mesmo um pouco sem vida.

Avia Rosier.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Quand on est enfant.

Andava para lá e para cá com um jardim em cima da cabeça... aquele cabelinho aneladinho e livre, de quem não tem mãe nem avó que dê jeito.
Babá? Nunca ouvira falar nisso. Gostava mesmo daquela vida de caçar tatuzinhos-bola no jardim e enfeitá-los com uma pitada de terra e várias pétalas de margaridas. Era o almoço de Carolina, Angélica, Ilca, Carla, Pedrinho e também do cachorro, que era tido como filho pela mãe solteira de cinco anos e dentinhos separados. Feijão de tatuzinhos bola nas panelinhas de plástico rosa ao molho de flores e barro. No entanto, cansava-se rápido daquela coisa de casinha e comidinha e nunca na vida ousou arrumar a cozinha do almoço. Queria desbravar o ecossistema do quintal da casa e, por Deus, como era grande. Largava sem dó nem piedade o bando de bonecas e chamava o cachorrinho, que era seus olhos e seu olfato e até mesmo sua intuição. Enterrava e desenterrava, ela mesma, tesouros de pedrinhas coloridas e minhocas e sempre acabava comendo terra, porque era simplesmente irresistível aquele cheirinho de minerais e infância. Escalava árvores de jabuticabas empoeiradas, comia goiaba e também os bichinhos das goiabas, que nada mais eram do que pedacinhos de goiaba dotados de movimento e coração. Quantas horas? Johanna não sabia olhar as horas em relógios de ponteiros, mas o sol já estava mais para lá do que pra cá, o que provavelmente indicava que estava na hora de começar a aula. Johanna era a professora das galinhas e não havia profissão no mundo mais honrosa do que lecionar para aquelas esganiçadas, mesmo que elas fossem extremamente bagunceiras e desorganizadas, pois nunca acatavam uma ordem sequer.
Mas era paciente e compreensiva e sabia que, mais cedo ou mais tarde, conquistaria a sua confiança e respeito, o que nunca chegou a acontecer de fato. Contudo, estava lá outra vez, no outro dia. Óculos sem lentes e um livrinho da coleção Vaga Lume nas mãos. A aula era também um aprendizado para Johanna. Há quem diga que galinhas sejam burras, mas burro mesmo é quem é incapaz de compreender o universo desses serezinhos altruístas e orgulhosos.

J'ai voulu être un nuage
Léger, rose et transparent
On n'a pas notion des choses
Quand on est enfant

segunda-feira, 19 de julho de 2010

A vigésima morte de Johanna

Pensava ser a última vez em que veria o pôr do sol e mais por egoísmo que por comoção aquela cena a espantava com uma angústia e uma saudade sem nome e sem razão, que aos poucos se ia tornando uma ansiedade intensa e violenta e um mal estar localizado nos ossos, ao que o seu espírito se inquietava a tal ponto de não o suportar por muito tempo dentro do próprio corpo. Nesse instante, lembrou-se do sorriso de Stella, o qual havia guardado sob muralhas de arrependimento e mágoas e este tenha sido talvez a última coisa de que se lembrou em vida e também a única coisa que haveria de evocar com a mesma devoção pelo resto de sua existência, mesmo depois que lhe enterrassem os farrapos mortais e lhe cobrissem com terra seca e flores mortas. Por entre as cortinas de vidro muito limpas do hospital, assistia àquela cena, tão enfada ontem e, no entanto, insuportavelmente valorosa naquele instante e, somente então, quis apegar-se ao mundo, mesmo diante da iminência de não mais pertencer a ele, embora pela primeira vez fosse capaz de senti-lo em sua realidade crua. Aquele sol de areia e névoas queimava as bordas da serra do outro lado da parede de vidro, ao mesmo tempo em que queimava-lhe os olhos e a alma. Alma fria, insossa e frívola como uma estátua grega no meio de um deserto de gelo. A morte vinha em forma de noite, para despertar Johanna como a uma morcega de trapos que se havia enfurnado em sua mortalha de velhice precoce. E somente quando despertou da vida descobriu que aquela saudade indigente nada mais era que solidão e que a angústia era apenas o prenúncio da morte, ainda que a morte já viesse infiltrando-se nela e erodindo seus sonhos desde muito antes de adentrar aquele quarto hospitalar.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Soberana, Senhora, Gota do Mar ou mesmo Rebelião.

Ela nao é o problema... ela é só um sintoma. Um disfarce para a dor... e muita imaginação
Nunca havia me sentido tão invadida, fragilizada por um olhar. Foram quatro vezes e em todas eu senti a agonia de ter os pensamentos expostos, sem qualquer filtro que os impedisse de voar para fora da minha mente e dançar soltos pelas minhas córneas como um filme em rápida frequência. Eu odiava me sentir exposta e ela simplesmente despia a minha alma e o fazia com displicência, enquanto tudo o que eu desejava era transpor aquele abismo que nos separava. Era pouco mais de um metro de precipício, ladeado de jovens semblantes tensos e à espreita dos deslizes uns dos outros. Um abismo composto de falso moralismo e imposto pudor, para onde eu tendia, não importasse qual esforço fizesse para que aquele tipo de pensamento se afastasse.

Sementes
De olhos negros lançam escuros
Anzóis...

Negro, doce sangue na boca,
Sombra,
Um outro vôo

Me arrasta pelo ar...
Coxas, pêlos;
Escamas e calcanhares

Na verdade, acho que nunca me esforcei o bastante, porque eu nunca quis que aquela sensação me deixasse. Eu me sentia viva naquele momento e isso não era algo frequente – desde a ida de Stellla. Além do mais, eu precisava muito me apegar a algo que me mantivesse presa ao mundo material, porque o meu espírito era leve demais, e tinha ímpetos de voar a qualquer ínfimo soprar dos meus pensamentos. Tudo isso, claro, depois do vôo de Stella.

Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em domínios meus o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua.
Vejo suas costas e as reflito fielmente.
Ela me paga em choro e agitação de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã sua face reveza com a escuridão.
Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.

Stella partiu e levou com ela algo que havia dentro de mim, um pouco do meu princípio vital, um pedaço do meu coração e muito da minha alma. Stella agora é um nome. Em mim ela é a dor, da qual dependo intensamente, para continuar existindo. Não sentir dor seria como apagá-la de mim e eu simplesmente não quero. Stella é a borboleta de quem corro atrás – e eu nunca acreditei que borboletas vivessem vinte e quatro horas. Ela existe em uma dimensão a que não pertenço e a qual não consigo imaginar que um dia vou alcançar. É como se nós tivessemos nos perdido num infinito de névoas ocultas, sem direções, sem norte. Como encontrar uma asa de borboleta no infinito? Vou morrer e vou continuar existindo, mas longe dela. Nossas mãos se soltaram e a vida continuou um espiral dinâmico que nunca me permite permanecer no mesmo lugar: uma vez que você passa por determinado lugar, ele não mais existe, é como um rio que se modifica a cada fração de segundo e nunca mais volta a ser o que era antes. Sendo assim, por onde começar correr quando chegar a hora de ir atrás dela? A pergunta para onde foi Stella? é um dragão que vive sob as minhas costelas. Às vezes ele adormece, mas basta um leve fremir, um baixinho assobio da minha ansiedade, para que ele acorde e comece o incêndio. Como encontrá-la, se agora ela é apenas sua consciência em seu estado mais pleno? Não sei da mente de Stella e isso faz perder-me em meio a mim mesma.

Quando você não espera encontrar nada, qualquer coisa serve.

Querido, a noite inteira
Eu passei oscilando, morta, viva, morta, viva.
Os lençóis opressivos como beijos de um devasso.

Foi por isso que o fogo de Mia me consumiu. Combustão completa. Mia é estranha e, no entanto, tem exatamente o que alguém precisa ter para chamar a minha atenção: desarmonia e idade para ser minha mãe. Precisa ser torto, incomum, inacabado – a propósito, Stella sempre foi a exceção de tudo! Stella era linda e jovem –; não pequeno, nunca simples. Mia ondula quando desfila os quadris largos, fala devagar, também em vagas, gargalha alto, fuma – nunca a vi fumar, mas eu posso projetá-la tragando fundo e soltando círculos de fumaça cancerígena pela boca – ; ela se diverte com ela mesma, tão segura de si, autossuficiente. Mia não precisa de salto para estar por cima, nem de saia para ser uma mulher completa. Ela dá ordens, escandaliza, impressiona. E eu preciso esperá-la sair, para voltar a respirar. Ela me queima e depois vai embora e é tudo muito rápido.

Não te assombra meu coração. E minha luz.
Eu sou, toda eu, uma enorme camélia
Esbraseada e a ir e vir, em rubros jorros.

(Os versos em lilás são de Sylvia Plath)

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Outro desvio crônico

O vento precisava prender-se ao lírio, contudo corria o risco de tornar-se uma tempestade e arrancá-lo da proteção de sua terra, destruindo-o por completo.

Mas o que na natureza não precisa ser destruído para que possa renascer? Talvez eles fizessem parte da natureza, e porventura precisassem mesmo se renovar. Sonhos, esperanças, qualquer resquício de ilusão que pudesse mantê-los ali, intactos, por mais algumas horas.

Naquela época, ela ainda não sabia que seu destino era um penhasco tão alto que, de lá, o chão não era possível de se ver. Era um erro ambulante, gerada e nascida de sombras muito perturbadoras e densas. Tendia ao erro, por mais que algo muito forte – ali, à sua frente, nos olhos dele – gritasse, implorasse para que ela acordasse do sonho escuro em que havia mergulhado. Existiam muitas formas de estragar tudo, era subumano encontrar alguma que consertasse. Como tentar remendar as peças que o passado, tão próximo, já havia colado errado?

Só queria que não existisse um mundo além daquele quadro em que estavam inseridos naquele instante, pois ele era um caminho que exigia grandes renúncias, as quais ela não seria capaz de suportar. A vida poderia acabar agora e tudo estaria bem, porque ele estava ali, segurando a sua mão.

Mas o mistério é que a vida nunca acaba.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Este texto não devia estar aqui...

... mas eu quis.


Amélia Bones gostava das roupas impecavelmente passadas e dos cabelos escovados para dentro. Agradecia a Deus todos os dias por não sofrer do coração e morria de medo de ficar hipertensa, por isto nunca comia nada que levasse tempero. Deixara de usar os enormes óculos de acrílico preto desde que um teste oftalmológico desmentira a idéia que sua mãe construíra: de que sofrer de miopia era hereditário e, se ela não enxergasse mal ainda, mais tarde viria a enxergar e os óculos deveriam estar lá para que ela nunca perdesse sua capacidade de aprendizagem. Talvez o problema de sua visão consistisse em enxergar primeiro com o coração, embora houvesse nela um grande senso de justiça e razão. Amélia apenas enxergava o mundo com outros olhos. Olhos adultos demais para uma criança, talvez porque sentisse desesperadamente que precisava crescer, para que, assim, as pessoas escutassem as verdades que ela dizia brincando. E sua inteligência galgou os mais altos cargos de seu mundo, embora um poder muito maior que o mérito pelo conhecimento viesse, mais tarde, a arrancar o brilho de seus olhos e o vigor de seu pulso firme.

Naquele dia, Amélia fez tudo metodicamente, como fazia todos os dias antes de ir para o trabalho. Alinhou a coleção de elefantes da sorte – uma superstição herdada do pai e que nenhuma cultura era capaz de banir – que enfeitavam a prateleira de sua sala de estar, e que também era a sala de visitas e o hall de entrada de sua casa de telhas holandesas e janelas brancas. Trocou a água com açúcar dos beija-flores que ficava pendurada em um lustre da varanda frontal da casa e alimentou seus três gatos siameses e seu cachorro spitz alemão cego dos dois olhos por catarata.

Sempre que saía de casa, deixava uma lista de feitiços de proteção na porta e um olhar de despedida recaía sobre o lugar. Seu jardim de lilases e violetas – amava a cor roxa mais que o amarelo e bronze de sua antiga casa em Hogwarts –, sua grama bem cuidada, tudo tão milimetricamente organizado como ela tentava fazer com a sua vida. Não era apegada às coisas materiais, nunca o fora. Porventura ela simplesmente soubesse que seria privada muito cedo daquela paz, mesmo que em nenhum momento ousasse ter medo da dor. Não. Amélia precisava da dor para se sentir viva. Se seu coração não se retorcesse de saudade e dor todos os dias dentro do peito, seria como se a morte de Edgar estivesse sendo esquecida. Mas ela se lembrava dele todos os dias. Suas feições tão juvenis, mesmo depois de dois filhos e algumas rugas de expressão. Suas piadas tão inglesas e seus óculos de aros quadrados, sempre tão bem vestido e aprumado. Os chás com biscoitos de nata em que ela e a cunhada trocavam livros enquanto as crianças brincavam com os animais. Sua família. Morta.

O Ministério da Magia não era mais um lugar seguro, assim como trabalhar ali não era mais uma necessidade e sim uma questão de honra. Enquanto as pessoas fugiam com suas famílias ou se rebelavam assumindo o lado negro, Amélia continuava, a cabeça erguida, ainda que seu poder tivesse sido restringindo. Permanecer ali era sua maneira de lutar. E se morresse? Não seria a primeira vez, ela já havia morrido diversas vezes.

— Bones! Aí está você — disse a voz grossa de Rufo Scrimgeour, assim que a silhueta esguia de Amélia emergiu das chamas verdes da lareira na entrada do Ministério.

— Algum problema, Scrimgeour? — perguntou a mulher, por trás de um olhar precavido que esquadrinhava tudo ao seu redor, a preocupação devidamente ocultada pela máscara de austeridade que edificara ao longo de seu trabalho.

— Stanislau Shunpike! — disse o homem, tentando a esmo parecer animado — Nós o capturamos! — ele sorriu, digno de pena.

— Ora, essa! E o que você quer que eu faça?

O Ministro hesitou, depois continuou, a voz mais baixa, parecendo sem graça.

— Bom, vamos mandá-lo a Azkaban, já mandei anunciar no jornal.

— Francamente, Scrimgeour, espera passar confiança à população bruxa prendendo um ladrão de galinhas?

Brunnë, este texto é para você. :)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Regret

Hier encore, j’avais vingt ans
Je gaspillais le temps en croyant l’arrêter
Ela sempre pensou que acolheria a velhice sem muito pestanejar. Abraçaria sua nova companheira inerente com todo o seu corpo antigo, moldando-se a ela, e obrigando-a a moldar-se também. Havia algo de bonito nisso, entrega e renúncia ao mesmo tempo.
No entanto, naquele inverno, sua nova irmã chegou com outras fantasias costuradas nos braços, e ela, Johanna, se enciumou.

E a mulher que sempre fora uma menina velha, transformava-se agora, pouco a pouco, em uma velha com desejos de menina.

As tardes de sol que as cortinas acinzentadas em seus olhos nunca a deixaram ver; os namorados que seu orgulho ressentido sempre fizera questão de repelir em forma de indiferença desgastante. Os amigos que ela afastou por sempre reclamar demais. Perdeu os amigos porque levantar-se do sofá para procurá-los era uma atitude trabalhosa demais. As vozes divinas que ela não escutou porque estava desesperada demais procurando por Deus, sem perceber que Ele gritava em vagas de vento fresco em dias quentes. Ele a tocava através dos pêlos macios de seus animais ou da chuva fina que molhava seu rosto. Deus era a água! Dançava para ela sob a forma de uma folha flutuando ao vento.

E ela sempre se escondia da chuva. Ela sempre fechava os olhos quando ventava. Ela varria as folhas de seu quintal, se perguntando por que Deus havia se esquecido dela. E quanto mais ela pedia, mais Ele mostrava. Quantas oportunidades afogadas na morna lama parada da desesperança e da inércia. Enquanto tentava blindar-se do mundo agressivo, a vida desgastou Johanna de uma forma tão brutal como nada do que ela se protegeu poderia ter feito. Fugindo da brutalidade, ela se escondeu numa casca impenetrável de frieza.

E o gelo queimou seu coração, porque o delicado essencial esteve lá o tempo todo, mas ela nunca quis ver.

Já vai amanhecer, Jo
A destruição é necessária
É o presságio da evolução

domingo, 24 de janeiro de 2010

Nostalgia

Está na hora de me despedir de toda a ilusão criada, ornamentada e enaltecida até então. Não que a dor não se faça presente em tal momento. Romper partes que ainda se mantêm unidas por um fiapo de lembrança dói mais que um acidente violento, pois essa frágil linha, descobre-se, é a mais forte que houve desde o começo. Aquele pedacinho de esperança que permaneceu, aquela fina recordação, como uma sombra que se apaga quanto maior for o nosso esforço para tentar torná-la nítida, quanto sofrimento isso pode causar. Eis a mais inabalável das ligações.

Sempre deixei vestígios espalhados, alguns até bem escondidos de mim mesma. Contudo, em todas as vezes, nunca houve ar nenhum de despedida, simplesmente porque eles estariam ali, para me encotrarem quando oportuno, quando Deus quisesse, ou não. Esta vontade não é Dele.

Difícil deixá-los agora, meus inerentes hábitos, que aos poucos se tornaram vícios e agora me são intrínsecos. Talvez eu deva voltá-los para a caixa que nunca fui capaz de queimar, embora ela sempre me queime a alma. Dentro da bolsinha de contas, protegidos de toda a minha efemeridade e debilidade de ocasião.

Com que fraqueza concluo este desfecho, entregando-me outra vez à incapacidade de por fim. Lendo pela décima vez as mesmas cenas, tão cuidadosamente narradas. Não acredito que houvesse alguma falsidade naqueles personagens, pois todos se tornaram tão inevitavelmente meus. Meus anti-heróis disfarçados de vilões, todos vítimas de si mesmos, todos ângulos diferentes da minha própria identidade. Ainda há tantos outros espalhados em diferentes cantos da minha mente insólita, à espreita da minha oportunidade, esperando um ínfimo relance da minha inspiração, desejando desesperadamente que eu os molde, que eu lhes dê ao menos uma chance de viver, mesmo que na insignificância das minhas histórias mortas, inacabadas, embora para mim, e somente para mim, sejam de importância realmente vital.

Mas nunca mais terei o mesmo prazer de manipular os meus preferidos, porque um pedaço de toda a fonte inesgotável se foi. Para onde, eu gostaria de saber.

Inacabado.