segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Atendendo ao comando;

[Vinte linhas é muito pouco, mas é tudo o que é permitido para esta narrativa em que devo contar a história da vida de um morador de rua com quem conversei e dar a ela um final surpreendente.]

A rua espreitava à sombra quando cheguei, não tinha nome. Na periferia há sempre um ar de incerteza, mesmo na quietude. Não notei de imediato a presença dela, compunha um emaranhado de panos sujos e cabelos desgrenhados em grossos cordões. Seu rosto era oval e opaco, mas estranhamente belo. Não devia ter mais que trinta anos. Perguntei seu nome, ela se retesou, depois respondeu. “É Marina.” Tentei demonstrar naturalidade sentando-me ao seu lado, mas ela conhecia aquela maneira que temos de lidar com algo muito asqueroso, que ironicamente é a mesma de quando tocamos em algo muito delicado. Ela era as duas coisas, e eu não sabia como portar-me naquele primeiro contato que tinha com a face mais crua do jornalismo. Expliquei meu propósito, esclarecendo que era apenas um trabalho de faculdade, o primeiro, aliás, quando ela me perguntou o que eu queria. Sorriu, para minha surpresa, mas sua dor era quase tangível. Pedi que contasse a mim tudo o que pudesse sobre as razões pelas quais se encontrava ali. Acabamos conversando por horas. Marina não era exceção, em seu mundo, ela era a regra. Sua história era igual à de tantas outras mulheres, vítimas do descaso, do machismo e da violência doméstica. A fuga para outra cidade fora uma medida desesperada contra a tortura de viver em função de um homem que nunca a respeitara. Quis buscar um pouco de dignidade em outro lugar, mas só o desemprego e o preconceito estavam lá para recebê-la. As drogas lhe permitiam desligar-se de sua realidade, o ópio era barato e disfarçava a sensação de frio e de fome. Como a história de Marina poderia ter um final surpreendente se estamos tão acomodados a casos como estes? Gostaria de tê-la retirado dali, quis levá-la comigo e dizer que tudo ficaria bem, que eu cuidaria dela. Mas eu era apenas uma estudante, sem renda e sem independência. E as ruas estão cheias de Marinas.