sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Este texto não devia estar aqui...

... mas eu quis.


Amélia Bones gostava das roupas impecavelmente passadas e dos cabelos escovados para dentro. Agradecia a Deus todos os dias por não sofrer do coração e morria de medo de ficar hipertensa, por isto nunca comia nada que levasse tempero. Deixara de usar os enormes óculos de acrílico preto desde que um teste oftalmológico desmentira a idéia que sua mãe construíra: de que sofrer de miopia era hereditário e, se ela não enxergasse mal ainda, mais tarde viria a enxergar e os óculos deveriam estar lá para que ela nunca perdesse sua capacidade de aprendizagem. Talvez o problema de sua visão consistisse em enxergar primeiro com o coração, embora houvesse nela um grande senso de justiça e razão. Amélia apenas enxergava o mundo com outros olhos. Olhos adultos demais para uma criança, talvez porque sentisse desesperadamente que precisava crescer, para que, assim, as pessoas escutassem as verdades que ela dizia brincando. E sua inteligência galgou os mais altos cargos de seu mundo, embora um poder muito maior que o mérito pelo conhecimento viesse, mais tarde, a arrancar o brilho de seus olhos e o vigor de seu pulso firme.

Naquele dia, Amélia fez tudo metodicamente, como fazia todos os dias antes de ir para o trabalho. Alinhou a coleção de elefantes da sorte – uma superstição herdada do pai e que nenhuma cultura era capaz de banir – que enfeitavam a prateleira de sua sala de estar, e que também era a sala de visitas e o hall de entrada de sua casa de telhas holandesas e janelas brancas. Trocou a água com açúcar dos beija-flores que ficava pendurada em um lustre da varanda frontal da casa e alimentou seus três gatos siameses e seu cachorro spitz alemão cego dos dois olhos por catarata.

Sempre que saía de casa, deixava uma lista de feitiços de proteção na porta e um olhar de despedida recaía sobre o lugar. Seu jardim de lilases e violetas – amava a cor roxa mais que o amarelo e bronze de sua antiga casa em Hogwarts –, sua grama bem cuidada, tudo tão milimetricamente organizado como ela tentava fazer com a sua vida. Não era apegada às coisas materiais, nunca o fora. Porventura ela simplesmente soubesse que seria privada muito cedo daquela paz, mesmo que em nenhum momento ousasse ter medo da dor. Não. Amélia precisava da dor para se sentir viva. Se seu coração não se retorcesse de saudade e dor todos os dias dentro do peito, seria como se a morte de Edgar estivesse sendo esquecida. Mas ela se lembrava dele todos os dias. Suas feições tão juvenis, mesmo depois de dois filhos e algumas rugas de expressão. Suas piadas tão inglesas e seus óculos de aros quadrados, sempre tão bem vestido e aprumado. Os chás com biscoitos de nata em que ela e a cunhada trocavam livros enquanto as crianças brincavam com os animais. Sua família. Morta.

O Ministério da Magia não era mais um lugar seguro, assim como trabalhar ali não era mais uma necessidade e sim uma questão de honra. Enquanto as pessoas fugiam com suas famílias ou se rebelavam assumindo o lado negro, Amélia continuava, a cabeça erguida, ainda que seu poder tivesse sido restringindo. Permanecer ali era sua maneira de lutar. E se morresse? Não seria a primeira vez, ela já havia morrido diversas vezes.

— Bones! Aí está você — disse a voz grossa de Rufo Scrimgeour, assim que a silhueta esguia de Amélia emergiu das chamas verdes da lareira na entrada do Ministério.

— Algum problema, Scrimgeour? — perguntou a mulher, por trás de um olhar precavido que esquadrinhava tudo ao seu redor, a preocupação devidamente ocultada pela máscara de austeridade que edificara ao longo de seu trabalho.

— Stanislau Shunpike! — disse o homem, tentando a esmo parecer animado — Nós o capturamos! — ele sorriu, digno de pena.

— Ora, essa! E o que você quer que eu faça?

O Ministro hesitou, depois continuou, a voz mais baixa, parecendo sem graça.

— Bom, vamos mandá-lo a Azkaban, já mandei anunciar no jornal.

— Francamente, Scrimgeour, espera passar confiança à população bruxa prendendo um ladrão de galinhas?

Brunnë, este texto é para você. :)