sexta-feira, 23 de julho de 2010

Quand on est enfant.

Andava para lá e para cá com um jardim em cima da cabeça... aquele cabelinho aneladinho e livre, de quem não tem mãe nem avó que dê jeito.
Babá? Nunca ouvira falar nisso. Gostava mesmo daquela vida de caçar tatuzinhos-bola no jardim e enfeitá-los com uma pitada de terra e várias pétalas de margaridas. Era o almoço de Carolina, Angélica, Ilca, Carla, Pedrinho e também do cachorro, que era tido como filho pela mãe solteira de cinco anos e dentinhos separados. Feijão de tatuzinhos bola nas panelinhas de plástico rosa ao molho de flores e barro. No entanto, cansava-se rápido daquela coisa de casinha e comidinha e nunca na vida ousou arrumar a cozinha do almoço. Queria desbravar o ecossistema do quintal da casa e, por Deus, como era grande. Largava sem dó nem piedade o bando de bonecas e chamava o cachorrinho, que era seus olhos e seu olfato e até mesmo sua intuição. Enterrava e desenterrava, ela mesma, tesouros de pedrinhas coloridas e minhocas e sempre acabava comendo terra, porque era simplesmente irresistível aquele cheirinho de minerais e infância. Escalava árvores de jabuticabas empoeiradas, comia goiaba e também os bichinhos das goiabas, que nada mais eram do que pedacinhos de goiaba dotados de movimento e coração. Quantas horas? Johanna não sabia olhar as horas em relógios de ponteiros, mas o sol já estava mais para lá do que pra cá, o que provavelmente indicava que estava na hora de começar a aula. Johanna era a professora das galinhas e não havia profissão no mundo mais honrosa do que lecionar para aquelas esganiçadas, mesmo que elas fossem extremamente bagunceiras e desorganizadas, pois nunca acatavam uma ordem sequer.
Mas era paciente e compreensiva e sabia que, mais cedo ou mais tarde, conquistaria a sua confiança e respeito, o que nunca chegou a acontecer de fato. Contudo, estava lá outra vez, no outro dia. Óculos sem lentes e um livrinho da coleção Vaga Lume nas mãos. A aula era também um aprendizado para Johanna. Há quem diga que galinhas sejam burras, mas burro mesmo é quem é incapaz de compreender o universo desses serezinhos altruístas e orgulhosos.

J'ai voulu être un nuage
Léger, rose et transparent
On n'a pas notion des choses
Quand on est enfant

segunda-feira, 19 de julho de 2010

A vigésima morte de Johanna

Pensava ser a última vez em que veria o pôr do sol e mais por egoísmo que por comoção aquela cena a espantava com uma angústia e uma saudade sem nome e sem razão, que aos poucos se ia tornando uma ansiedade intensa e violenta e um mal estar localizado nos ossos, ao que o seu espírito se inquietava a tal ponto de não o suportar por muito tempo dentro do próprio corpo. Nesse instante, lembrou-se do sorriso de Stella, o qual havia guardado sob muralhas de arrependimento e mágoas e este tenha sido talvez a última coisa de que se lembrou em vida e também a única coisa que haveria de evocar com a mesma devoção pelo resto de sua existência, mesmo depois que lhe enterrassem os farrapos mortais e lhe cobrissem com terra seca e flores mortas. Por entre as cortinas de vidro muito limpas do hospital, assistia àquela cena, tão enfada ontem e, no entanto, insuportavelmente valorosa naquele instante e, somente então, quis apegar-se ao mundo, mesmo diante da iminência de não mais pertencer a ele, embora pela primeira vez fosse capaz de senti-lo em sua realidade crua. Aquele sol de areia e névoas queimava as bordas da serra do outro lado da parede de vidro, ao mesmo tempo em que queimava-lhe os olhos e a alma. Alma fria, insossa e frívola como uma estátua grega no meio de um deserto de gelo. A morte vinha em forma de noite, para despertar Johanna como a uma morcega de trapos que se havia enfurnado em sua mortalha de velhice precoce. E somente quando despertou da vida descobriu que aquela saudade indigente nada mais era que solidão e que a angústia era apenas o prenúncio da morte, ainda que a morte já viesse infiltrando-se nela e erodindo seus sonhos desde muito antes de adentrar aquele quarto hospitalar.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Soberana, Senhora, Gota do Mar ou mesmo Rebelião.

Ela nao é o problema... ela é só um sintoma. Um disfarce para a dor... e muita imaginação
Nunca havia me sentido tão invadida, fragilizada por um olhar. Foram quatro vezes e em todas eu senti a agonia de ter os pensamentos expostos, sem qualquer filtro que os impedisse de voar para fora da minha mente e dançar soltos pelas minhas córneas como um filme em rápida frequência. Eu odiava me sentir exposta e ela simplesmente despia a minha alma e o fazia com displicência, enquanto tudo o que eu desejava era transpor aquele abismo que nos separava. Era pouco mais de um metro de precipício, ladeado de jovens semblantes tensos e à espreita dos deslizes uns dos outros. Um abismo composto de falso moralismo e imposto pudor, para onde eu tendia, não importasse qual esforço fizesse para que aquele tipo de pensamento se afastasse.

Sementes
De olhos negros lançam escuros
Anzóis...

Negro, doce sangue na boca,
Sombra,
Um outro vôo

Me arrasta pelo ar...
Coxas, pêlos;
Escamas e calcanhares

Na verdade, acho que nunca me esforcei o bastante, porque eu nunca quis que aquela sensação me deixasse. Eu me sentia viva naquele momento e isso não era algo frequente – desde a ida de Stellla. Além do mais, eu precisava muito me apegar a algo que me mantivesse presa ao mundo material, porque o meu espírito era leve demais, e tinha ímpetos de voar a qualquer ínfimo soprar dos meus pensamentos. Tudo isso, claro, depois do vôo de Stella.

Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em domínios meus o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua.
Vejo suas costas e as reflito fielmente.
Ela me paga em choro e agitação de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã sua face reveza com a escuridão.
Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.

Stella partiu e levou com ela algo que havia dentro de mim, um pouco do meu princípio vital, um pedaço do meu coração e muito da minha alma. Stella agora é um nome. Em mim ela é a dor, da qual dependo intensamente, para continuar existindo. Não sentir dor seria como apagá-la de mim e eu simplesmente não quero. Stella é a borboleta de quem corro atrás – e eu nunca acreditei que borboletas vivessem vinte e quatro horas. Ela existe em uma dimensão a que não pertenço e a qual não consigo imaginar que um dia vou alcançar. É como se nós tivessemos nos perdido num infinito de névoas ocultas, sem direções, sem norte. Como encontrar uma asa de borboleta no infinito? Vou morrer e vou continuar existindo, mas longe dela. Nossas mãos se soltaram e a vida continuou um espiral dinâmico que nunca me permite permanecer no mesmo lugar: uma vez que você passa por determinado lugar, ele não mais existe, é como um rio que se modifica a cada fração de segundo e nunca mais volta a ser o que era antes. Sendo assim, por onde começar correr quando chegar a hora de ir atrás dela? A pergunta para onde foi Stella? é um dragão que vive sob as minhas costelas. Às vezes ele adormece, mas basta um leve fremir, um baixinho assobio da minha ansiedade, para que ele acorde e comece o incêndio. Como encontrá-la, se agora ela é apenas sua consciência em seu estado mais pleno? Não sei da mente de Stella e isso faz perder-me em meio a mim mesma.

Quando você não espera encontrar nada, qualquer coisa serve.

Querido, a noite inteira
Eu passei oscilando, morta, viva, morta, viva.
Os lençóis opressivos como beijos de um devasso.

Foi por isso que o fogo de Mia me consumiu. Combustão completa. Mia é estranha e, no entanto, tem exatamente o que alguém precisa ter para chamar a minha atenção: desarmonia e idade para ser minha mãe. Precisa ser torto, incomum, inacabado – a propósito, Stella sempre foi a exceção de tudo! Stella era linda e jovem –; não pequeno, nunca simples. Mia ondula quando desfila os quadris largos, fala devagar, também em vagas, gargalha alto, fuma – nunca a vi fumar, mas eu posso projetá-la tragando fundo e soltando círculos de fumaça cancerígena pela boca – ; ela se diverte com ela mesma, tão segura de si, autossuficiente. Mia não precisa de salto para estar por cima, nem de saia para ser uma mulher completa. Ela dá ordens, escandaliza, impressiona. E eu preciso esperá-la sair, para voltar a respirar. Ela me queima e depois vai embora e é tudo muito rápido.

Não te assombra meu coração. E minha luz.
Eu sou, toda eu, uma enorme camélia
Esbraseada e a ir e vir, em rubros jorros.

(Os versos em lilás são de Sylvia Plath)