Nunca havia me sentido tão invadida, fragilizada por um olhar. Foram quatro vezes e em todas eu senti a agonia de ter os pensamentos expostos, sem qualquer filtro que os impedisse de voar para fora da minha mente e dançar soltos pelas minhas córneas como um filme em rápida frequência. Eu odiava me sentir exposta e ela simplesmente despia a minha alma e o fazia com displicência, enquanto tudo o que eu desejava era transpor aquele abismo que nos separava. Era pouco mais de um metro de precipício, ladeado de jovens semblantes tensos e à espreita dos deslizes uns dos outros. Um abismo composto de falso moralismo e imposto pudor, para onde eu tendia, não importasse qual esforço fizesse para que aquele tipo de pensamento se afastasse.
Sementes
De olhos negros lançam escuros
Anzóis...
Negro, doce sangue na boca,
Sombra,
Um outro vôo
Me arrasta pelo ar...
Coxas, pêlos;
Escamas e calcanhares
Na verdade, acho que nunca me esforcei o bastante, porque eu nunca quis que aquela sensação me deixasse. Eu me sentia viva naquele momento e isso não era algo frequente – desde a ida de Stellla. Além do mais, eu precisava muito me apegar a algo que me mantivesse presa ao mundo material, porque o meu espírito era leve demais, e tinha ímpetos de voar a qualquer ínfimo soprar dos meus pensamentos. Tudo isso, claro, depois do vôo de Stella.
Agora sou um lago. Uma mulher se inclina para mim,
Buscando em domínios meus o que realmente é.
Mas logo se volta para aqueles farsantes, o lustre e a lua.
Vejo suas costas e as reflito fielmente.
Ela me paga em choro e agitação de mãos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã sua face reveza com a escuridão.
Em mim afogou uma menina, e em mim uma velha
Salta sobre ela dia após dia como um peixe horrendo.
Stella partiu e levou com ela algo que havia dentro de mim, um pouco do meu princípio vital, um pedaço do meu coração e muito da minha alma. Stella agora é um nome. Em mim ela é a dor, da qual dependo intensamente, para continuar existindo. Não sentir dor seria como apagá-la de mim e eu simplesmente não quero. Stella é a borboleta de quem corro atrás – e eu nunca acreditei que borboletas vivessem vinte e quatro horas. Ela existe em uma dimensão a que não pertenço e a qual não consigo imaginar que um dia vou alcançar. É como se nós tivessemos nos perdido num infinito de névoas ocultas, sem direções, sem norte. Como encontrar uma asa de borboleta no infinito? Vou morrer e vou continuar existindo, mas longe dela. Nossas mãos se soltaram e a vida continuou um espiral dinâmico que nunca me permite permanecer no mesmo lugar: uma vez que você passa por determinado lugar, ele não mais existe, é como um rio que se modifica a cada fração de segundo e nunca mais volta a ser o que era antes. Sendo assim, por onde começar correr quando chegar a hora de ir atrás dela? A pergunta para onde foi Stella? é um dragão que vive sob as minhas costelas. Às vezes ele adormece, mas basta um leve fremir, um baixinho assobio da minha ansiedade, para que ele acorde e comece o incêndio. Como encontrá-la, se agora ela é apenas sua consciência em seu estado mais pleno? Não sei da mente de Stella e isso faz perder-me em meio a mim mesma.
Quando você não espera encontrar nada, qualquer coisa serve.
Querido, a noite inteira
Eu passei oscilando, morta, viva, morta, viva.
Os lençóis opressivos como beijos de um devasso.
Foi por isso que o fogo de Mia me consumiu. Combustão completa. Mia é estranha e, no entanto, tem exatamente o que alguém precisa ter para chamar a minha atenção: desarmonia e idade para ser minha mãe. Precisa ser torto, incomum, inacabado – a propósito, Stella sempre foi a exceção de tudo! Stella era linda e jovem –; não pequeno, nunca simples. Mia ondula quando desfila os quadris largos, fala devagar, também em vagas, gargalha alto, fuma – nunca a vi fumar, mas eu posso projetá-la tragando fundo e soltando círculos de fumaça cancerígena pela boca – ; ela se diverte com ela mesma, tão segura de si, autossuficiente. Mia não precisa de salto para estar por cima, nem de saia para ser uma mulher completa. Ela dá ordens, escandaliza, impressiona. E eu preciso esperá-la sair, para voltar a respirar. Ela me queima e depois vai embora e é tudo muito rápido.
(Os versos em lilás são de Sylvia Plath)Não te assombra meu coração. E minha luz.
Eu sou, toda eu, uma enorme camélia
Esbraseada e a ir e vir, em rubros jorros.