quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Hoje; anos depois; as partes de que me lembro (...)

Nunca cheguei a imaginar que as coisas aconteceriam da forma como aconteceram. É impressionante a confiança que sentimos quando erguemos sonhos em terrenos de pó, embora sempre estejamos errados sobre o futuro. Mas imaginar a vida sem ela era como imaginar-me sem membros. Sem olhos, sem consciência. É vida? É. A vida é tumulto, calmaria pressente problema, apesar de a vida ao lado dela nunca ter sido algo tranquilo. É injusto dizer que Maris me fazia sofrer, quando tudo o que me destruía partia de mim, e corria tortuoso em direção a ela. Sofri de tanto vê-la sofrer. Na tentativa de transferir para mim feridas que eram dela, desgastei-a profundamente.

Ah, era para falar sobre a vida de agora, vou contar sobre ela. É que a velhice nos permite certa paciência. É engraçado, porque quando somos jovens, corremos contra o tempo, estamos sempre atrasados para qualquer coisa. Agora que meu tempo é ínfimo, sinto que posso o que quiser, com a maior calma do mundo. Mas antes, devo encontrar alguma forma de decodificar Maris. É cruel falar dela porque ela era, ela é um anjo. Personificação da bondade, retocada de ironia e delinquência. Ah, não. Maris não era desonesta, nem com ela nem com ninguém. A insolência dela era culpa da criança que ela nunca conseguiu deixar de ser, e não se tratava de uma criança normal, mas uma criança marcada por dores de adulto. O problema é que fazia mal demais a si mesma, querendo ser correta com os outros. Espero em Deus que Maris esteja bem.

Hoje não tenho mais a cautela que tinha para escrever, quando jogava as tardes fora brincando de trocar palavras com Maris... a gente gostava de rebuscar, que erudição era aquela que nos invadia? A verdade é que, com ela, tudo fazia sentido.


J.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Atendendo ao comando;

[Vinte linhas é muito pouco, mas é tudo o que é permitido para esta narrativa em que devo contar a história da vida de um morador de rua com quem conversei e dar a ela um final surpreendente.]

A rua espreitava à sombra quando cheguei, não tinha nome. Na periferia há sempre um ar de incerteza, mesmo na quietude. Não notei de imediato a presença dela, compunha um emaranhado de panos sujos e cabelos desgrenhados em grossos cordões. Seu rosto era oval e opaco, mas estranhamente belo. Não devia ter mais que trinta anos. Perguntei seu nome, ela se retesou, depois respondeu. “É Marina.” Tentei demonstrar naturalidade sentando-me ao seu lado, mas ela conhecia aquela maneira que temos de lidar com algo muito asqueroso, que ironicamente é a mesma de quando tocamos em algo muito delicado. Ela era as duas coisas, e eu não sabia como portar-me naquele primeiro contato que tinha com a face mais crua do jornalismo. Expliquei meu propósito, esclarecendo que era apenas um trabalho de faculdade, o primeiro, aliás, quando ela me perguntou o que eu queria. Sorriu, para minha surpresa, mas sua dor era quase tangível. Pedi que contasse a mim tudo o que pudesse sobre as razões pelas quais se encontrava ali. Acabamos conversando por horas. Marina não era exceção, em seu mundo, ela era a regra. Sua história era igual à de tantas outras mulheres, vítimas do descaso, do machismo e da violência doméstica. A fuga para outra cidade fora uma medida desesperada contra a tortura de viver em função de um homem que nunca a respeitara. Quis buscar um pouco de dignidade em outro lugar, mas só o desemprego e o preconceito estavam lá para recebê-la. As drogas lhe permitiam desligar-se de sua realidade, o ópio era barato e disfarçava a sensação de frio e de fome. Como a história de Marina poderia ter um final surpreendente se estamos tão acomodados a casos como estes? Gostaria de tê-la retirado dali, quis levá-la comigo e dizer que tudo ficaria bem, que eu cuidaria dela. Mas eu era apenas uma estudante, sem renda e sem independência. E as ruas estão cheias de Marinas.


sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Stella nunca deixou de ser

I will steal you, Stella.

Acontece como com as pessoas que continuam sentindo os membros mesmo depois de amputados.

Ou o doce do açúcar dissolvido em água pura. Não mais se vê.

Intocável como sempre o fora.

Claro espelho estilhaçado, que de tanto se dividir, tornou-se incolor. E quanto mais reflete agora! Tão mais se faz presente, porque agora é disperso – como sempre sonhou ser – onipresente.

Minha flor ubíqua, nos meus onze sentidos, em sinestesia e comunhão permanente

Entrega

Para mudar o mundo você precisa suportar a dor e usar todas as suas chances de ser ouvido. Isso inclui seu sangue, sua vida e muito além. Para mudar o mundo você precisa entregar mais que a própria vida à luta, você precisa expor os seus irmãos. E vê-los partir, um após outro. Em cada gota de sangue, um grito de libertação. Morrer pelo que você acredita é uma forma de nunca se calar diante do absurdo, de não deixar que o preconceito e o terrorismo o sufoquem. Lutar é doar até o que você não possui, se isso significa perseguir o seu propósito.

Lembro-me que a última coisa que vi em vida foram os olhos dele. Duas fendas cobertas de verdes nuances. Então era assim? Apenas aquele silêncio verde, cego e indolor?

A morte é um espelho. No meu inverso de vida não houve dor nem medo, apenas o alívio da minha consciência. Ela foi tudo o que me tornei. Ela e apenas ela, clara e limpa como um cristal. Nela, a memória estava presente, preenchendo um espaço infinito de lembranças daqueles que me deram paz em uma vida de guerra. Foi quando me lembrei deles que descobri as respostas dos meus porquês e tudo ficou bonito, claro e indolor.

Amélia Bones

sexta-feira, 24 de julho de 2009

V O L E R


Traço um caminho tortuoso, cheio de subidas e declínios. Mas sinto que, mesmo perdendo o foco, é sempre à frente que meu olhar atento mira. Eu dou asas aos meus pensamentos, permito que voem nas mais altas nuvens, até que possam sentir que são feitas apenas de ; eu desmorono e vejo que ainda possuo os pés no chão. Ainda não abandonei os sonhos. Mas também não deixo que eles me enlouqueçam. Efêmero equilíbrio que só o desespero me permite ter.