sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Lucidez distorcida

O pai de Avia não tinha nome.
Nunca a havia olhado nos olhos. E por vezes ela gritou silenciosamente, na esperança de que ele a percebesse. Mas ela era uma aberração aos olhos sensíveis dele. E quando uma imagem é muito chocante, ou você desvia os olhos, ou você a encara indiscretamente. E ele não teve coragem para olhá-la.

O fato é que ele nunca soube como era ter os olhos moles e o coração acelerado. Ele nunca soube que algumas pessoas precisam de mais do que o mundo pode oferecer e que essas pessoas enxergam demais do mundo e são comumente julgadas por isso. E, principalmente, ele nunca soube o que era sentir-se um estranho em meio a sua própria família.

''Eu me chamo Johanna agora, mas isso não muda o fato de eu ainda ter feridas vivas no peito'', um dia disse Avia à psiquiatra, com a qual se tratava da esquizofrenia. ''Me diz, como fugimos da gente mesma? Pensei que os remédios fossem limpar a minha alma desses buracos negros. Mas eu continuo acordando à noite com aquela mulher me olhando. E, por favor, você precisa acreditar em mim, ela sabe de tudo. Ela sabe que ele me feriu, ela sabe o porquê. E ela tem as respostas, mas ela quer algo em troca. Ela sou eu, doutora Lisa?''

Para a maioria das pessoas, ser homem é ser tirano, é ostentar força fisica e usá-la para garantir sua soberania. É nunca chorar, nunca sentir. Para Avia, ser homem era como ser mulher, era apenas ser gente. E gente sente. Se é cruel, não é gente, é monstro. Mas ela nunca o viu como um monstro.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Espiral

Avia era um vulcão encoberto por uma fina camada de costumes e contratos. Ela era aquilo que todos gostariam de esconder, camuflar. Mas quando se expande demais por dentro, é inevitável a explosão...

E ela não temia as chamas, porque já havia vivido o inferno uma, duas, três... sete vezes. Talvez estivesse dentro dela própria e emergisse... então não eram as chamas que a feriam, era a própria incapacidade de impedi-las de se formaram dentro de si. E, uma vez queimada por dentro, fica-se infértil. Infértil. Avia era seca, incapaz. Como controlar seu mundo caótico? É assim que a vítima se torna o agressor, na maioria das vezes. Mas Avia não era vítima nem agressora. Avia era um espinho, uma pedra no sapato da sociedade ou mesmo uma pequena pulga. O estrago que causava era pequeno demais para que alguém fizesse alguma coisa a seu respeito. Então passou a vestir as roupas de Johanna e passou a dizer que se chamava Johanna, porque, se fosse outra pessoa, talvez deixasse de sentir aquele bolo de dores.

Johanna poderia ter entrado naquele prédio de preconceitos e tirado Avia das chamas da insanidade...

Mas Johanna não sentia mais o mundo nessa época. Sua mente já não existia tanto quanto antes, como quando Avia era criança. E, por não sentir, é que Johanna não percebia que Avia era doente e que sua doença degenerava a sua alma, dia após dia. E consumia todo o resto.

Houve uma época em que Johanna não sabia mais seu nome ou quem era, mas trazia tudo de seu passado para as circunstâncias atuais. Ela dizia que o mundo tinha perdido suas flores, que não havia mais crianças, mas projetos de adultos, que eram adestrados como cães de circo. Johanna havia mesmo se esquecido de que nunca gostara de crianças, e agora rogava por elas, defendia-as, talvez por ter, ela própria, se transformado em uma.

Mas Avia era uma raposa que não podia ser adestrada; e ela também não o queria, mas o resto do mundo, o resto do mundo havia deixado Avia daquele jeito. Mas quem era Avia? Sabia que Avia pertencia a ela, mas não sabia por quê. Deveria lembrar e deveria fazer algo para que lembrasse. Não havia fotos, nem vídeos, nem livros com algum perfume que chamasse sua memória de volta. Mas havia uma caixa de remédios, uma caixa branca e preta. Johanna não conseguia ler, já não enxergava nitidez. Comprimidinhos cor de pêssego, eram eles que iriam trazer sua memória de volta. Sua vida de volta.

E dava voltas em volta de si. Parada, dava voltas. E sua vida voltava. Stella. Stella Maris voltou...!